sexta-feira, 13 de março de 2009

Uma Varredura na História

"A Gramática Histórica", uma coleção em quatro volumes que versa sobre os diversos campos de estudo da língua portuguesa é uma elegante edição de duzentas páginas em cada tomo, rica ilustração - a começar pela foto sorridente do autor na primeira página - e uma bela capa de couro pintado de vermelho. Trata-se de uma coleção dos velhos tempos, que amarela as páginas sem perder a profundidade das tintas, tampouco enruga o couro de sua capa se a ao menos uma estante estiver reservada. Elaborada por seu autor nos tempos em que viveu no exílio, trata-se de um dos principais compêndios sobre a língua portuguesa elaborados no século passado. O autor, Jânio "da Silva" Quadros, um matogrossense nascido no dia 25 de janeiro de 1917 em Campo Grande - hoje Mato Grosso do Sul - dedicou-se com meticuloso interesse à sua elaboração, o que o consagrou como acadêmico das letras que era e como portador de imenso conhecimento sobre as origens culturais de nossa identidade enquanto nação. Tenho a coleção toda de Jânio em algum armário aqui de casa. Poucas vezes a utilizei, e confesso não tê-la aberto nos últimos anos, muito embora o pleno conhecimento gramático seja vital para a boa atividade jornalística. No entanto, me recordo das impressões de meus avós sobre o maior fenômeno eleitoral da história do Brasil, homem que saiu da insignificância partidária para o mais alto posto do país. Jânio espetacularizou pela primeira vez os comícios eleitorais, com o show de horrores que promovia ao receber injeções de calmantes em público, arrancar os poucos cabelos que tinha e promover a participação ativa de seus eleitores no palanque, como testemunhos de fé dos que vemos nas Igrejas até os dias de hoje. Votar em Jânio, em suma, era basicamente isto: um testemunho de fé. Poucas vezes se utilizou de forma tão flagrante o personalismo como arma nas urnas, vez alguma se anulou a participação partidária com tamanha força nem se centralizou a admistração Federal de modo tão profundo. Talvez por isto os nove meses de governo tenham estabelecido o recorde negativo como o presidente que, eleito, menos tempo permaneceu no poder. Bêbado de amor pelo poder e louco de desejo pela aclamação popular, Jânio tropeçou em sua gramática percepção do Brasil. Ao analisar questões de capilares dificuldades com a simplicidade de quem classifica tal conjugação verbal como correta ou incorreta, o ex-presidente recaiu no erro, recorrente até este século, dos que degustam apenas o glacê do bolo enquanto deixam a massa intocada. Sua volta à cena política, como candidato ao governo paulista em 1982 - derrotado por Franco Montoro, que exerceria um desastroso mandato - e o retorno à prefeitura paulistana com a vitória de 1985 - quando capitalizou os votos conservadores, em contraponto ao o eleitorado "esquerdista" de Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy - representaram uma página quase inverossímil de nossa história política. O retorno de Jânio é até hoje lembrado como a prova cabal de que jamais se dá como morto quem tão bem quanto ele capta os interesses das massas - ainda que quase nunca atendidas - e exerce o marketing pessoal com tamanha competência. O vídeo acima, datado da campanha ao governo em 1982, mostra um Jânio pouco à vontade na cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo. Uma espécie de César Maia de seu tempo, com o eleitorado concentrado na capital - especialmente em bairros populares e populosos como a Vila Maria e a Vila Madalena, futuros redutos malufistas - perdeu ao menos duas eleições para o governo pela dificuldade em atingir as atenções do eleitorado interiorano, pouco afeito a um político que sofria com as acusações de promover bebedeiras há décadas. Gramaticalmente, o polido Jânio Quadros representou um hiato em nossa história presidencial. Porém, ao analisarmos sob a ótica literária, a presença da folclórica figura esquálida, descabelada e trôpega no poder é a maior mostra de nossa falta de maturidade ao escolhermos e resgatarmos nossos líderes. Dezesseis anos depois de morto, Jânio é a memória de uma de nossas maiores derrotas - uma vez que sua queda contribuiu para o Golpe de 64, ao dar subsídios ideológicos aos defensores da ruptura com o sistema democrático, como todos se lembram - e a paixão de suas maiores vitórias, presente mais de vinte anos após seu último pleito, em todos os que amaram o trépido e carismático personagem, tão amado quanto odiado por todas as forças: cultas, incultas, e até mesmo as terríveis.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Assalto ao Tempo

O passar de novo ao doze me causou surpresa:
Como pode o tempo nos driblar com tal destreza?
Como pode o assento nos tomar com tamanha agilidade?
E eu respondo que esperar o tempo é pura imbecilidade

O tempo está aí, desde que o mundo é mundo
A espera de um passatempo propício e fecundo
A espera de um perder tempo por qualquer lugar
A espera de uma boa intenção para tirar o lugar

Esse é o tempo, o maior fura-fila que há
Que só quer do cinema o melhor lugar
Que só quer da arquibancada o melhor lugar
Que só quer no ônibus o melhor lugar...

Sempre que queremos o melhor, vem o tempo e nos leva
Enfrenta a nossa ineficiência e enseja
Um jeito de fazer o fim da fila perdurar
Pode o tempo por minuto nos perdoar?

Vejo que o tempo só é bom para a criança
Quando passa um dia em cinco, um mês em ano
Dá tamanho de gigante a um pequeno desengano
Dá espaço de elefante a qualquer trapo, qualquer pano

Vem os doze, treze anos...
E o tempo então começa a nos enfrentar
De espada na mão, de escudo na outra
Há qualquer jeito de nosso maior inimigo enfrentar?

Somos todos Dom Quixotes de nossa própria finitude
Na eterna espera de um algo a mais depois do fim
Como as raspas do pote de sorvete, como as lascas da barra de chocolate
Somos sempre espera pelo o que o tempo não levou

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

No Inferno por 1 Segundo - Parte I

Foto: desastresaereos.net


















Quando o Comandante Fernando Antônio Vieira, 21 anos de vôo, foi avisado por seu co-piloto da perigosa proximidade do Boeing 727-200 da VASP a "morrotes" nas cercanias de Fortaleza, era tarde demais. A gravação da caixa-preta, datada de 8 de julho de 1982 e a primeira a ser divulgada pela imprensa brasileira, terminava com um grito de dor e horror - creditado por amigos ao próprio Comandante Vieira - poucos segundos depois. O Boeing acabou por se chocar contra um enorme "morrote": a Serra da Aratanha, na região metropolitana de Fortaleza. Com Vieira, atingiram os pontos finais em suas vidas 137 passageiros e tripulantes, uma triste soma de proporções inéditas até então, e que só viria a ser superada com a queda de um avião da Gol no interior do Brasil, em 2006. O 727-200, vôo 168, havia partido do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, com 59 passageiros e 9 tripulantes. Na escala carioca, pouco depois, embarcaram outros 69. O insólito do acidente reside até hoje no mistério que cerca as suas causas, que nunca foram inteiramente esclarecidas. A mais aceita nos meios aeronáuticos dá conta de que o Comandante Vieira - em um erro primário - desconsiderou a baixa altitude em que a aeronave se encontrava, fazendo com que ela entrasse na rota e posteriormente colidisse com a Serra da Aratanha. Explica-se: O primeiro alerta de descida pôde ser ouvido a 5.800 pés, aproximadamente 1.900 metros de altura. Em seguida, o Boeing já se encontrava a apenas 2.300 pés, 767 metros do chão. Foi o último alerta antes do derradeiro, a 1.500 pés, 500 metros, Serra da Aratanha. Em um procedimento correto, a aeronave só estaria a esta altitude quanto atingisse o perímetro urbano de Fortaleza, 30 quilômetros a frente. Para a História, o piloto foi sentenciado. Autorizado a descer até o nível mínimo de segurança, 5.000 pés, ele ignorou a determinação. O choque ocorreu a 530 quilômetros por hora, sem que houvesse qualquer chance para uma manobra de última hora.

Uma Busca Bizarra

Não demorou para que os primeiros moradores de Pacatuba, uma região muito pobre até hoje e miserável naqueles tempos, chegassem ao local do acidente. Assim como acontecera em Santa Catarina, em acidente com um vôo da Transbrasil poucos anos antes, os moradores locais aproveitaram a situação para promover uma busca bizarra. Restos de corpos, que explodiram em pequenos pedaços assim como a aeronave, que acompanhavam anéis, alianças e brincos de valor eram carregados em sacolas e "colocados no prego" no mercado paralelo fortalezense. O resgate demorou para chegar à região, de difícil acesso, e quando o fêz, os saques já haviam sido realizados em sua grande parte. Obviamente, os bombeiros-médicos pouco tiveram o que fazer. Os únicos atendimentos realizados trataram curiosos, que na ânsia de chegarem ao local do acidente para presenciarem o cenário macabro, se feriram com restos do avião que ainda fumegavam pelo chão. Os ataques aos restos de bagagens e demais pertences dos finados passageiros continuaram, ainda que em menor escala, por um bom tempo. Ossos de anelares, com seus respectivos anéis, eram expostos em feiras populares cearenses até dois anos após a tragédia. O ocaso do vôo 168 não só pôs fim a centenas de vidas de forma brutal, como também serviu para escarnecer a mesquinhez a que miséria e fome levam o homem.